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Conteúdo 11 de julho de 2008

A corrente do goró

Algumas coisas só podem mesmo surgir em Brasília. A Cidade hoje está mudada; mas algumas raízes comportamentais do passado recente geram ramificações pitorescas.

Até pouco mais de uma década, a vida social e cultural da classe média capital brasileira não era lá muito diversificada. No final de semana, quem não pegasse o avião para visitar os familiares em seu estado era obrigado a ficar da frente da televisão, em algum clube ou ir à casa de amigos (de preferência no Lago).

E nesse clima de solidão, as bebidas alcoólicas se integraram ao dia a dia da comunidade, ultrapassando a fronteira do domingo rumo aos happy hours após o expediente.

Juntando a isso, não dá para dissociar o Distrito Federal da sua vocação política. Nesse caso, todo mundo já ouviu falar nos três poderes: legislativo, executivo e judiciário. Mas poucos aceitam a existência do quarto e talvez mais forte poder: os costumes, que realmente norteiam os conceitos éticos.

Então, enquanto os governantes, parlamentares e juízes disfarçam suas incompetências com arroubos de moralismo, o povão cria suas próprias formas de driblar as normas que não interessam.

Talvez um dos melhores exemplos dessa realidade brasiliense e brasileira seja recente sanção presidencial à lei que proíbe os motoristas de dirigir com qualquer resquício de álcool no corpo. E para garantir o cumprimento da norma, as polícias de todo o país iniciaram uma seqüência de blitzes para pegar os bebuns insistentes e puni-los exemplarmente.

Não se pode dizer que a Lei esteja errada. Dados preliminares indicam que o número de acidentes de carro foi drasticamente reduzido. No entanto, a parte da população interessada em continuar bebendo está apostando que a fiscalização só é fogo de palha e logo-logo, tudo voltará a ser como antes.

Mas enquanto as autoridades não se cansam da brincadeira, os boêmios de Brasília resolveram se unir para continuar tomando seus tragos nos bares e restaurantes, minimizando o risco de ser flagrado com a cuca cheia de cachaça.

E assim nasceu a Corrente do Goró. O motorista que passa ou enxerga uma blitz do bafômetro trata de avisar por celular ou e-mail o maior número possível de pessoas, que a partir do comunicado passam a evitar o território proibido, além de repassar a informação aos amigos (se não estiverem bêbados demais para isso).

Os policiais já avisaram pela imprensa que vão mudar a estratégia. Mas o mais provável é que eles sejam derrotados pelo quarto poder, que tem como uma de suas principais características a habilidade de driblar, ou dar um balãozinho, nas regras contrárias aos interesses e aos costumes do dia-a-dia.

Mas por que esse quarto poder se destaca tanto na sociedade brasileira? Simples, porque o primeiro, o segundo e o terceiro poder estão para lá de desmoralizados. Isso é provado em qualquer pesquisa de credibilidade do tipo “em quem você confia?”.

Veja bem: a situação não nos permite afirmar que a sociedade rejeita regras; mas sim que ela não acredita nas regras existentes e por isso evita se submeter.

Afinal, seria cinismo deixar de reconhecer que o arcabouço legal brasileiro não é repleto de confusões, contradições e indefinições. Veja o caso do banqueiro Daniel Dantas: num dia ele foi preso, para ser solto no outro e detido novamente após algumas horas. Independentemente de ele ser ou não inocente, o fato é que um bom advogado consegue dar nó em quase todas as leis brasileiras, pois elas carecem de lógica e encadeamento entre si.

E a corrente do goró está muito bem informada. Segundo alguns advogados que consultei sobre o assunto, o motorista que for parado em uma blitz tem o direito de não se submeter ao bafômetro. Provavelmente ele será levado à delegacia, onde se fará um laudo de “presunção de embriaguez”. Mas daí a coisa já vai para o lado da subjetividade e a causa é facilmente ganha na justiça.

Então, o quarto poder segue dando as cartas em Brasília e no país. Em breve, o consumo de álcool se juntará a outros hábitos formalmente proibidos, mas socialmente aceitos.

A Lei e o Estado estão novamente na rota da desmoralização. Para combater o quarto poder, a única receita eficaz é moralizar e tornar respeitável o legislativo, o judiciário e o executivo.

As normas devem ser cumpridas, se forem claras, lógicas e realmente fiscalizadas pelo poder público. Uma nova Constituição viria bem a calhar, especialmente se fosse em torno de um décimo do tamanho da atual.

E enquanto isso não ocorre, o legislativo finge que cria leis de verdade; o executivo faz de conta que executa tais leis; e o judiciário acumula toneladas de processos que não consegue dar conta.

Então, o quarto poder é o de maior eficácia. E a sua vedete do momento é a Corrente do Goró.

Eduardo Starosta é economista. E-mail: eduardostarosta@uol.com.br

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