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Conteúdo 31 de outubro de 2008

O ralo entupiu e vazou

Há algumas horas eu estava confortavelmente redigindo uma análise de conjuntura, quando senti um cheiro não muito agradável de flatulência no ar que foi aumentando a cada instante. Concentrado no que fazia, imaginei tratar-se de algum vizinho mais poderoso do que o normal.

Algum tempo depois, quando o mau cheiro já tinha passado, ou minhas narinas se acostumaram a ele, fui pegar mais uma caneca de café na cozinha. A peça estava inundada e acima da lâmina d’água era possível identificar substâncias boiando que tirariam o apetite de qualquer um por vários dias.

Aparentemente se trata do velho problema do retorno do ralo entupido em um andar superior e que acaba vitimando o coitado do vizinho de baixo. Mas como hoje é um dia de muito trabalho, resolvi deixar para mais tarde a minha reclamação à sindica do prédio , residente no apartamento de onde provavelmente se originou o ataque  químico (passei a ter um certo nojo dela; mas a filha é um pedaço de mau caminho).

Ao adiar minha ação corretiva, estou também dizendo que a cozinha, afora alguns panos para evitar que a água passe para a sala, continua do mesmo jeito que a encontrei. Tentarei remediar a situação depois de concluir os trabalhos mais urgentes do dia.

Podem me chamar de relaxado, mas olhando o mundo de hoje garanto que sou um dos menos  piores deles. Veja só: ontem o Federal Reserve (Banco Central dos EUA) reduziu os juros básicos norte-americanos para 1% ao ano. O Conselho de Política Monetária do Banco Central do Brasil provavelmente estava esperando pela consolidação dessa decisão para manter a Selic inalterada em 13,75%.

Ironicamente,  olhando o mapa-múndi da maneira tradicional, dá para se dizer que os EUA são um vizinho que fica no andar de cima do Brasil. E reconhecidamente  o fluxo das relações econômicas deles estão com problemas de fluidez, como num ralo entupido.

Vejamos: resumidamente, a crise financeira teve sua origem em juros excessivamente baixos para incentivar o consumo, que no início da década estava combalido pelo fiasco do que se chamava na época de Nova Economia. O resto da história já está mais do que contada: o dinheiro barato acabou sendo multiplicado excessivamente, dando origem à falta de critérios de risco para empréstimos,  descambando nos créditos podres que hoje assombram o mundo e paralisam as relações econômicas.

E o que seria o mais correto de se fazer numa situação dessas? Contrariando o meu próprio comportamento em relação ao ralo da cozinha, acredito que a lógica mandaria limpar a sujeira (tirar de circulação os créditos podres); desentupir os dutos (recuperar a fluidez do sistema financeiro); para só depois voltar a usar os canos para dar escoamento de água e esgoto (partir para reativar o processo econômico).

Mas as autoridades monetárias norte-americanas preferiram virar o problema de ponta-cabeça e incentivar o consumo de um povo que não tem mais por onde enfiar tantas dívidas. Evidentemente, é de se esperar que os dutos já entupidos não consigam escoar mais créditos podres. E o espelho d’água de titica pode se transformar num grande e insuportável esgoto a céu aberto.

O mais engraçado de tudo é que as bolsas de valores do mundo entraram em delírio, com os viciados no jogo de ações comprando o que vêem pela frente e profetizando o final da crise. Coitadinhos…

Enquanto isso, aqui no andar de baixo do mapa-múndi, além de sermos vitimados pelos entupimentos da economia dos EUA, temos uma estrutura de poder público que insiste em continuar fazendo suas próprias cacas sem capacidade de escoamento.

A Selic só não aumentou porque os juros dos EUA caíram, tornando os títulos da dívida brasileira comparativamente mais atrativos. O problema é que isso faz com que o custo básico no nosso dinheiro seja simplesmente 1.275% mais caro do que o praticado na América do Norte. Tudo para continuar girando uma dívida pública estrondosa e injustificada. O certo seria reduzir despesas estatais desnecessárias, o que repercutiria também positivamente na possibilidade de baixar os impostos.

Em outras palavras, o Brasil, além de receber porcaria da crise originária nos EUA está insistindo em manter seus próprios entupimentos.

Ainda bem que todo mundo está feliz.

Estou convencido! Vou limpar a cozinha e mandar verificar os canos agora.

Eduardo Starosta é economista: eduardostarosta@uol.com.br

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