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Conteúdo 4 de março de 2009

A vingança da fartura

Lembram-se dos velhos tempos, quando costumávamos falar da "crise das subprime" – e que até pensávamos que essa crise poderia ser "controlada"? Oh, que saudade!

Hoje nós sabemos que os empréstimos subprime foram apenas uma pequena parte do problema. Até mesmo hipotecas podres foram, no geral, apenas uma parte do que deu errado. Estamos vivendo num mundo de tomadores de empréstimos problemáticos, indo de construtores de shopping centers a economias europeias "maravilhosas". E novos tipos de dívidas problemáticas vão continuar surgindo.

Como essa crise de dívida global ocorreu? Por que ela está tão disseminada? A resposta, eu afirmaria, pode ser encontrada num discurso que Ben Bernanke, o presidente do Federal Reserve, pronunciou há quatro anos. Naquela ocasião, Bernanke estava tentando passar tranquilidade. Mas o que ele disse foi uma previsão da queda que viria.

O discurso, intitulado A Vingança da Poupança Global e o Atual Déficit em Conta dos EUA ofereceu uma nova explicação para o rápido crescimento de déficit comercial dos EUA no começo do século 21. As causas, argumentou Bernanke, não estavam na América, mas na Ásia.

Em meados dos anos 1990, disse ele, as economias emergentes da Ásia eram grandes importadoras de capital, emprestado no exterior para financiar seu desenvolvimento. Contudo, após a crise financeira asiática de 1997-98 (que parecia algo importante no momento, e que parece trivial comparado ao que está ocorrendo agora), esses países começaram a se proteger, acumulando ativos estrangeiros de alta liquidez e, de fato, exportando capital para o resto do mundo. O resultado foi uma inundação de dinheiro barato, procurando lugar para ir.

A maior parte desse dinheiro foi para os Estados Unidos – daí nosso déficit comercial gigantesco, porque déficit comercial é o reverso do fluxo de capital. Mas como Bernanke corretamente destacou, o dinheiro também vai para outros países. Um número de pequenas economias europeias experimentaram fluxos de capital que, embora muito menores em termos de dólares do que o fluxo para os EUA, eram bem maiores comparados ao tamanho de suas economias.

Porém, muito dessa fartura de reservas globais acabou na América. Por quê? Bernanke citou "a sofisticação e a abrangência dos mercados financeiros do país" (que, entre outras coisas, permitiu acesso fácil à riqueza imobiliária). Abrangência, sim. Mas sofisticação? Bem, pode-se dizer que os banqueiros norte-americanos, autorizados por um quarto de século de fervor desregulatório, lideraram o mundo ao descobrir formas sofisticadas de enriquecer ocultando riscos e enganando os investidores.

Sistemas financeiros abertos e frouxamente regulamentados caracterizaram muitos dos outros destinatários dos fluxos de capital. Isso pode explicar a relação quase assustadora entre a exaltação conservadora de dois ou três anos atrás e o desastre econômico de hoje. "As reformas tornaram a Islândia um tigre nórdico", dizia uma análise do Instituto Cato. "Como a Irlanda virou um tigre celta", era o título de um artigo da Fundação Heritage. "O milagre econômico estoniano" foi título de outro. Todos os três países estão hoje em crise profunda.

Por um instante, o fluxo de capital criou a ilusão de riqueza nesses países, assim como fez com os norte-americanos proprietários de casas: os preços dos ativos estavam subindo, o câmbio estava forte e tudo parecia bem. As bolhas estouram, cedo ou tarde, e as economias maravilhosas de ontem se tornaram os problemas de hoje, países cujos ativos se evaporaram, mas cujas dívidas continuam bem reais. E essas dívidas são especialmente pesadas porque a maioria dos empréstimos foi tomada em moedas de outros países.

O prejuízo também não está confinado aos tomadores de empréstimos originais. Na América, a bolha imobiliária ocorreu principalmente ao longo das costas, mas quando estourou, a demanda por bens manufaturados, especialmente carros, entrou em colapso, causando terrível perda no coração industrial. Igualmente, as bolhas europeias estavam principalmente na periferia do continente, mas a produção industrial da Alemanha– que nunca teve uma bolha financeira, mas é o centro industrial da Europa – está caindo depressa, graças ao mergulho das exportações.

Se vocês querem saber de onde a crise global veio, então, pensem desta maneira: estamos assistindo à vingança da fartura.

E a fartura de poupança ainda está aí. Aliás, maior do que nunca, agora que os consumidores repentinamente empobrecidos redescobriram as virtudes de economizar e o boom mundial por ativos, que forneceu um escoadouro para todas as poupanças excedentes, transformou-se numa quebradeira global. Uma forma de ver a situação internacional agora é que nós estamos sofrendo de um paradoxo global de economizar: em todo o mundo, a poupança desejada ultrapassa o montante das empresas que estão dispostas a investir. E o resultado é uma recessão global que deixa todo mundo pior.

Então assim é como chegamos a essa bagunça. E ainda estamos procurando a saída.

Paul Krugman é economista, colunista do New York Times e Prêmio Nobel de Economia de 2008

Fonte: Diário do Comércio – www.dcomercio.com.br

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